Identidade digital, Estado, Privacidade e Personalidade Humana

“Privacidade é o poder de se revelar seletivamente ao mundo”

Cypherpunk’s Manifesto de 9 de março de 1993.

Ao se falar sobre identidade digital não há como separar os seguintes elementos:  Estado e privacidade. Falar em privacidade é falar em direitos da personalidade humana, cuja existência não depende de uma lei positiva (quer dizer, feita pelo Estado), a não ser que você entenda que, para existir como ser humano, você precise do reconhecimento formal do Estado.

Falar em direitos da personalidade, então, é falar de humanidade no mais sublime aspecto, reconhecendo-nos como um ser admirável que somos, tanto no aspecto físico quanto psíquico. Sendo assim, falar desses direitos é falar em direitos naturais e irremovíveis. Sim, parece algo circular, e é mesmo, pois a natureza humana, pela sua natureza, irradia e, por essa irradiação, se reconhece as características humanas naturalmente irremovíveis, que, se ‘‘tiradas’’ ou negadas, deixamos de ser humanos e passamos a ser coisa (e uma coisa sempre terá um dono).

A privacidade, assim, faz parte da personalidade humana (como o direito à integridade física), e os direitos da personalidade, que o direito costuma chamar de direitos da personalidade, são absolutos e indisponíveis.

Aí que surge o grande problema da identidade digital.

A União Européia tem e está implantando seu projeto de identidade digital para toda a população, e a venda do peixe é sempre a apelativa “segurança e as facilidades” que acompanham a coisa.

A privacidade é essencial para o ser humano. O ser humano possui informações e dados que ele, simplesmente, por pura ausência de vontade, não quer compartilhar, e isso não requer nenhuma explicação de sua parte. Acontece que a tecnologia traz obstáculos a essa vontade interior do ser humano de, caso queira, se isolar do mundo, compartilhar ou não pensamentos, informações, ou dados, apenas com quem e quando ele deseja. Não é simplesmente uma questão de “adaptação aos novos tempos”, mas da retirada forçada de um elemento intrínseco ao ser humano, é retirar uma parcela de sua humanidade, parcela de sua dignidade humana (no mínimo).

O pior é que, vindo como imposição do Estado, há uma força exercida sobre o indivíduo que, cedo ou tarde, será acompanhada de sanções, que a tornará tudo simplesmente irresistível, quer dizer, ou se faz ou será punido. Vimos recentemente o aumento da repressão dos Estados quanto ao passaporte de vacina. O ser humano deseja, precisa de privacidade. Como será o futuro de uma sociedade que busca eliminar esse direito (ou essa característica da personalidade humana)?

Garantir que cada indivíduo tenha conhecimento apenas do que é diretamente necessário para uma transação, e possibilitar que o outro forneça apenas as informações necessárias já não é algo tão simples, embora os Estados sempre digam que há “garantia” dessa regra de ouro; embora para particulares possa ser restrito, esse banco de dados central é absolutamente aberto para o Estado.

Antigamente quando você ia comprar uma revista em uma loja, entregava o dinheiro ao vendedor e pronto, não havia necessidade de saber quem você era, se estava vacinado, o Estado não sabia onde, quando e o que você fazia com o seu dinheiro, se ali tem ou teve contato com alguém doente ou saudável etc. Parece distópico – e é! – pois isso é o que ocorre quando você usa um pagamento por meio eletrônico, por exemplo, com um celular, e é, sim, despótico. Quando a identidade se revela ‘pelo mecanismo subjacente da transação’, não há mais privacidade. Não há mais a revelação seletiva; o indivíduo deve, agora, sempre se revelar.

Fechar portas, sussurrar aos ouvidos, isso já não garante mais a privacidade, mas as tecnologias eletrônicas poderiam e deveriam garanti-la. A centralização desse poder nas mãos dos Estados não pode ter um bom final.

Para se ter uma ideia, a crescente tecnologia sobre a biometria não despertou nas pessoas o senso dos seus potenciais perigos. Identificar um indivíduo com base em traços físicos registráveis, não é novidade, mas a tecnologia moderna parece não conhecer limites (e sim, o Brasil usa essa tecnologia e muitos nem sabem); ela usa abstrações digitais de traços fisiológicos e até comportamentais para identificar indivíduos, prever suas ações e até influenciá-los. Se você não sabia, desde 2020 os sistemas de identificação facial melhoram a ponto de identificar uma pessoa de máscara. O maior sistema de identidade biométrica hoje (segundo dados disponibilizados) está na Índia, o Aadhaar, armazenando informações (biométricas, incluindo foto, varreduras de íris e as impressões digitais e dados demográficos) de mais de 1 bilhão de pessoas, num banco de dados central.

Nem vou falar da questão da identificação genética que, por enquanto, aqui no Brasil, se limita aos casos de identificação criminal (Lei nº 12.037/2009) quanto ao gênero, mas, se comparada à tecnologia de biometrias que existe hoje (identificação facial, leitura de micro expressões faciais, temperatura corporal à distância etc.), parece insignificante.

Recentemente, em 2021, uma empresa concessionária de uma das linhas do Metrô de São Paulo foi condenada a pagar 100 mil reais por captar imagens em câmeras de reconhecimento facial e ainda identificar as emoções das pessoas, sem consentimento. Um problema é que a identificação facial pode ser realizada sem o conhecimento do cidadão, basta passar por uma câmera, inclusive pode ser feita a partir de uma foto publicada numa rede social qualquer.

Bem, a coisa vai muito longe, e nosso propósito aqui é apenas fazer uma pergunta ao final (e não, as Leis como a LGPD, ainda que existam – veja aqui [ 1 ] [ 2 ] – não muda em nada a situação do poder do Estado).

Porém, isso não para por aí. Não se pode esquecer da identidade das coisas, que está inseparavelmente ligada aos seus “donos”.

A tecnologia vem criando, como denominam os experts em tecnologia, “ecossistema de objetos inteligentes”, que se conectam à Internet para compartilhar dados ‘’entre si’’. O que é o mesmo que dizer que as suas coisas informam dados a outras coisas que acabarão na mão de algum terceiro. Alguns desses objetos já são chamados pelos ‘‘especialistas’’ de divindades domésticas do século XXI. Tudo em sua casa pode (rá) fornecer alguma informação: temperatura interna, playlist favorita, notícias lidas no dia, o que você tem na geladeira, quem acessou e a que horas o alarme, quem abriu a porta, fez café etc. Esses sistemas vão se tornando onipresentes, passando ‘’despercebidos’’ pelas pessoas. No fim, o que se revela, não são dados de “máquinas”, mas informações sobre a sua vida privada.  

Voltando especificamente à imposição Estatal da identidade digital, ela cria o potencial risco da coisificação do ser humano e do agigantamento do Estado a ponto de dominar por completo a vida do cidadão. A vida privada é essencial para o ser humano, como dissemos, e a tecnologia, embora possa ser boa num momento, nas mãos do Estado pode possibilitar um domínio imparável.

Atividades cotidianas podem simplesmente ser afetadas, e isso vimos na prática nos últimos dois anos em Estados que exigiram passaportes sanitários para as pessoas serem atendidas em hospitais, entrar em lojas, comprar alimentos, andar em espaços públicos, etc. A pessoa passa a ser tratada como uma coisa que está fora do “padrão”, uma espécie de não-cidadão ou, na melhor das hipóteses, uma pessoa de segunda classe que não tem acesso à totalidade da sociedade.

Uma coisa que se deve ter em mente é que o Estado nunca para; uma vez que ele detém poder, nunca o devolve, e sempre exige mais, pois o controle não apenas facilita o “trabalho” do Estado como dá um controle impensável sobre as pessoas. É o Estado, ou melhor, uma elite política no poder quem definirá o que é essencial para constar numa identidade digital, esses critérios poderão (e vão) mudar com o tempo (e ao vil prazer dessa elite que sempre se revela com ares de salvadora e superior às massas); e quem estará 100% de acordo com os padrões sociais, médicos e políticos definidos?

E o humano, agora um amontoado de dados que necessariamente terá de ser constantemente atualizado, se simplesmente não se tornar obsoleto, interessará não apenas ao Estado, mas às grandes corporações que tratarão toda a vida do cidadão como “ativos financeiros”, criando meios para conduzir o cidadão ao consumo (na melhor das hipóteses).

Nem vou falar das técnicas de manipulação do comportamento que o Estado poderá usar. É interessante lembrar o que aconteceu recentemente no Canadá com muitas pessoas que ajudaram financeiramente os caminhoneiros protestando contra o governo. O Estado, com o poder de mover alguns dados, pôde eliminar toda e qualquer resistência com uma simples sanção financeira bloqueando e confiscando seu dinheiro.

O indivíduo, você e eu, será mero sujeito passivo destas intervenções, por mais que nos tentem convencer dos benefícios e da segurança de uma identidade digital que conterá, ao fim, absolutamente as chaves para impulsionar ou restringir sua vida.

A proposta real, no final, é essa: a criação de novos mestres que guiarão as massas ao prometido admirável mundo novo, enquanto lhes confiamos nossa vida sem questionar. A fé cega que nos pedem, nem mesmo a religião exige, pois volta ou outra, esta última nos apresenta alguns milagres para alegria e esperança dos fiéis; já o Estado sempre nos apresenta, para a tristeza de todos, velhas desculpas em roupas novas.

Ah! Sim. A pergunta final. Os benefícios da Identidade Digital são maiores que o preço da liberdade que abrimos mão?

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