Processo, prova digital, geolocalização e intimidade: Algo não está certo.

Ao falar em processo judicial, devemos ver quem o compõe. A primeira figura é o Estado, a segunda é o polo ativo e, por fim, o polo passivo. Mas não basta. Saber quem de fato compõe os polos é tão essencial quanto saber que o Estado é a parte mais forte desta relação (afinal é ele quem impõe sua decisão à força no final).

Dizer simplesmente que processo é um mecanismo Estatal para resolver conflitos é uma forma quase eufemística de pensar. O poder que o Estado possui hoje e sua quase(?) onipresença na vida das pessoas é incomparável na história. Além da tecnologia que ele mesmo possui, tem o poder de determinar a particulares que usem sua tecnologia (ou qualquer outro meio) como bem entender. Não, não é uma forma hiperbólica de falar, é o que ocorre de fato hoje.

Se já temos o problema de limitar o uso de algumas tecnologias pelas grandes empresas (as Big), imagine tentar impedir o Estado quando o tema é usar tecnologias que aumentam seu poder de controle social.

Chegamos à grande ilusão, pensar que o Estado tem a divina missão de solucionar todos os conflitos do mundo e criar um paraíso perfeito para a humanidade. Há quem julgue ser isso mesmo, nem que para isso tenha mecanismos maximamente invasivos, outros pensam o contrário.

A ética no uso da tecnologia deveria estar presente nos debates públicos (reais), o problema é que há pouco ou nenhum debate público (real) sobre os limites do uso das tecnologias, em especial quanto ao Estado (veja, por exemplo, a mais nova, o SNIPER!), até que seja tarde.

Aqui entramos no nosso tema, o processo trabalhista e o uso do geolocalização dos celulares dos empregados como meio de prova.

Nos processos trabalhistas (vou tentar resumir ao máximo o tema para efeitos deste texto) que buscam pagamento de horas extras, os empregadores vêm pedindo a quebra do sigilo sobre geolocalização dos celulares do empregado litigante. Muita vez o pedido é aceito pelos juízes. O problema se agrava quando o empregador é hipersuficiente, quer dizer, com tantos recursos (como os Bancos) que não pode ser comparado a um empregador/empresa comum, menos ainda com os cidadãos comuns.

Mas vamos por partes. Antes de prosseguir vamos ver alguns conceitos que nos ajudarão na solução da questão.

Privacidade.

Direito humano, indissociável da pessoa, que dá ao sujeito o poder de viver sua intimidade sem ser incomodado, de revelar aos outros apenas aquilo que ele quer. Direito de estar só. O contrário disso não é publicidade, é escravidão, pois o escravo não tem vida privada, a vida não é sua (não tem intimidade, íntimo, o mais profundo do ser, não é de si, pertence a outro).

Poder.

É a capacidade, de fato, que alguém tem de fazer com que outros lhe obedeçam, que façam aquilo que ele manda, independentemente do motivo ou meio.

Relação de emprego.

Vínculo de obrigações criada livremente pela vontade daquele que oferece sua força de trabalho e daquele que vai pagar pelo trabalho, onde as regras do trabalho são definidas por aquele que paga (obedecendo os limites da lei).

Poder de direção.

Poder do empregador de definir todos os aspectos do trabalho (tempo, forma, quantidade, qualidade, local etc.). O empregador, por causa disso, quanto mais poder, mais assume os riscos.

Bens particulares.

Coisas que pertencem a uma pessoa natural (física), tenha ou não valor econômico, tenha ou não uso prático, está ligado à sua privacidade e intimidade.

Ferramentas de trabalho.

Bens, instrumentos, coisas que são usadas para a prestação do trabalho para o empregador, em regra fornecidos pelo empregador (exemplos: computadores, celulares, carros, ferramentas, uniformes, EPIs, e-mails), são ferramentas corporativas.

Vida privada.

Direito à intimidade que a pessoa tem de estar só, ou com sua família apenas, de revelar-se apenas a quem quiser e se quiser, de não ter intromissão em sua intimidade (saúde, economia, gostos, preferências, desejos, imagem, contatos, amizades etc.). O privado é o que está separado, individual, indissociável do íntimo (intimidade).

Com esses conceitos, vamos ao processo trabalhista e à dita prova.

Nestes processos trabalhistas, o empregador, notadamente os Bancos, pedem que o juiz determine às operadoras de telefonia que entreguem a ele (juiz, alguns dirão ao processo, outros ainda ao Estado), os dados de geolocalização do empregado para comprovar se ele estava no local de trabalho ou não, nas datas e horários discutidos.

A primeira pergunta que fazemos é, quem está pedindo?

  • O empregador? Mais! Que empregador? Um super-conglomerado econômico ou uma empresa com os maiores lucros líquidos recordes semestrais, com toda capacidade de controlar a jornada de seus funcionários? Sim. Então onde estão as demais provas de controle de jornada? É ele que detém, como que vimos, o poder de direção e assume os riscos.
  • A segunda pergunta é, se ele não tem os controles comuns de jornada, por que ele teria o direito de usar como prova os dados de um bem particular de uma pessoa para suprir a sua omissão?
  • A terceira. Se ele tem comprovantes de jornada, porque usar outros “elementos” que nem estão sob seu controle? Qual a razão de entrar na vida privada do cidadão?

Dizer que “a parte do processo pede, mas é o juiz quem decide…” não é tão simples como aparenta. É o Estado que detém o poder de mandar apresentar tais dados. A questão principal, então é: qual ou quais os limites para o Estado fazer devassas na vida das pessoas?

Parece haver elementos que devem, no mínimo, servir de filtros para o Estado, e justamente existem para impedir que o ESTADO interfira na vida do cidadão. Se não se pode parar esta ‘’tendência’’ de usar a tecnologia para aumentar o poder do Estado, ao menos deve estar submetida a critérios sensatos.

Se é particular o bem, por exemplo o celular, é bem privado, se é privado, não deve ser invadido ou devassado, independentemente se o empregado o usava no ambiente de trabalho, já que foi o empregador quem aceitou seu uso. O empregador não tem o direito nem deve o juiz determinar a apresentação de dados de geolocalização.

Se o celular é corporativo, é ferramental/instrumento de trabalho, e não faz parte da vida privada, e o uso em atividades íntimas pelo empregado, após alertado pelo empregador, é um risco que o empregado assume. Aqui poderia servir como prova em caso de existir conflito entre outras provas no processo. Porém, se o empregador deixa usar o aparelho para fins privados, se assemelha à bem de uso privado (poderia ser também um aparelho de geolocalização num veículo).

Em nenhum caso deve o Estado, de ofício, determinar apresentação dos dados num processo trabalhista, pois seria extrapolar os limites do razoável, estaria suprindo de ofício um ônus do empregador litigante (e este cometeria abuso do direito de defesa ao pedir a devassa), seria violação da intimidade, desequilibra a relação processual que já é, na maioria dos casos, desigual.

Se se quiser o argumento “legal”, pegue o artigo 21, do Código Civil, que garante a inviolabilidade da vida privada. Se quiser algo mais forte, temos o Art. 5º, inciso LXXIX (“é assegurado, nos termos da lei, o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais; ”) e X (“são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; ”),  da Constituição Federal. Algo de fora? A convenção de Budapest, artigo 15, que é supralegal (por garantir direitos humanos fundamentais) invocada a aplicação analógica; também temos o Pacto Internacional das Nações Unidas de 1966 sobre Direitos Civis e Políticos garantindo a inviolabilidade da vida privada; a nossa lei de interceptações telefônicas, a contrario sensu, nos diz que só se deve usar dados privados em casos de crimes, em investigação criminal e em instrução processual penal, e deve sempre obedecer o segredo de justiça, e quando houver indícios razoáveis da autoria ou participação e a prova não puder ser feita por outros meios disponíveis. Quer dizer, tudo afasta o uso indiscriminado desta prova digital no processo comum.

Se isto não bastar, podemos apelar ao bom senso, esquecido companheiro. Lembremos que, uma vez concedidos poderes ao Estado para invadir a vida privada do cidadão, num mero processo trabalhista onde se discute horas extras, por exemplo, este poder que jamais será renunciado pelo Estado.

Mesmo que se diga que a operadora de celulares mostrará apenas dados positivos referentes ao lugar e horário discutido, omitindo todas as outras informações, não muda o fato de abrir-se a esfera de intimidade da pessoa num mero processo trabalhista. Se se pode o mais, que é num processo trabalhista comum, que será quando a coisa afetar o fisco? Onde comprou? Com qual cartão? Que horas? O que comprou? Era Low-Carb? Era Free-Carbon? Animal-Free Proteins? Quem estava junto? Era vacinado?

Que será, então, quando alguém falar algo que desagrade alguma notoriedade política?

Essa história de ‘Estado buscando equilíbrio e soluções justas para um mundo melhor’ é pura estória, pois quem pode se equilibrar ante um superestado? O Estado se torna superior aos cidadãos, pois os limites são postos apenas por ELE (quer dizer, quem detém o controle do Estado).

E o reconhecimento facial, já ouviu falar? Mas vamos deixar esta história para a próxima.

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